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25 de ago. de 2011

PENINHA



Sábado passado estávamos aos pés de uma árvore, debaixo de chuva e frio. Um grupo de cinco amigos e quatro corpos, três das quatro pessoas que mais me defenderam no terreiro e um dos Orixás que mais sofreram comigo ali. Meu pai, minha mãe, Sr. Marabô e o Peninha. O Pai Peninha.

Eu e o Peninha temos uma afinidade que transcende o físico, ultrapassa vidas. A gente se entende desde garoto, no passe de bola, nas piadas, nos protegíamos nas brigas, dividimos o mesmo quarto e trabalhamos juntos por muito tempo, meus pais o amam tanto quanto a mim ou qualquer um dos meus irmãos e na Umbanda não poderia ser diferente. Iniciamo-nos praticamente ao mesmo tempo, ajudamos  - mesmo sem saber o que estava acontecendo - a fundar a casa que hoje todos chamam de Portal dos Orixás, para nós era somente uma reunião entre amigos para compartilhar da Luz dos Orixás e ceder a eles o nosso corpo.

Vibrei quando seu desenvolvimento evoluiu e seus guias começaram a proferir as primeiras palavras. Certo dia numa sessão no quarto da casa de nossa Mãe seu preto velho foi embora e ele se sacudiu, comemorei como se fosse um gol em final de copa do mundo: "Você viu aquilo? Viu?!" Éramos crianças crescendo e até hoje me sinto meio juvenil perto da simplicidade com que Pai Peninha me mostra as coisas da vida, logo eu que me gabo de ser articulado com as palavras, vejam só.

Já o odiei, confesso. Odiei nas vezes em que ele faltou numa gira e me deixou sozinho lá sem aqueles repiques de atabaque, sem aquela voz estridente a me acompanhar nos pontos, sem aquele sorriso rechonchudo quando tudo dá certo, sem as preces puras de coração no fim de cada gira.

Num momento qualquer de dificuldade foi ele quem me deu a lição que prego a todos aqui: "Cara, seu compromisso é com os guias e com quem precisa de ajuda. Entra, faz o seu e sai, Oxalá está vendo tudo isso". Aprendi tantas coisas com ele... inclusive que estou me tornando um bobo sentimental.

Molhei meu teclado. Axé.

15 de ago. de 2011

MARABÔ



Sábado temos duas festas no templo: Omolú e Exú. Para mim é uma data muito especial, data de minha morte e renascimento enquanto umbandista, marca o dia em que aprendi o valor e o significado da palavra lealdade, marca a frase que para mim fio a mais certeira das profecias: Sr. Marabô dizendo: "Sou eu quem limpo a sujeira, logo tudo o que prego será comum aqui". Naquele dia, quando meu pai (e cambone da casa) me contou da frase eu - ainda cego de mágoa - nem liguei, praticamente pense "E daí? está tudo acabado mesmo...", mas o tempo me provou o contrário. O tempo e o Sr. Marabô.

Enquanto reclamavam que ele mantinha abertas as cortinas do congá na linha de Exú, ele dizia: "Sou filho de Deus igual a um Caboclo ou um Preto-Velho, por que eu temeria essa luz? E mesmo que eu temesse, por acaso essa cortina tem algum poder mágico capaz de barrar a Luz Divina? Então deixe-a aberta, por favor"

Exú falando em Deus? Para muitos aquilo era o maior dos absurdos. Ele rebatia: "Ai de mim se não lembrar a todos quem manda aqui". Nesse mesmo ano ele entrou na capela do cemitério, se ajoelhou e orou.

Quando ele assumiu a tarefa de fazer descarregos no templo, disseram que era loucura, que tanto ele quanto eu estávamos passando dos limites. Talvez só eu, pois as afrontas aos costumes retrógrados eram tão grandes que Exú nenhum faria aquilo sem a "influência" de um jovem Pai-pequeno. Ele interveio: "Esses eguns acabam todos na minha banda mesmo, só estou fazendo o meu trabalho diante de seus olhos".

Nasceu a lenda de que Exú não come sal: "Me dê um punhado de sal... viram? É apenas sal, seja na minha boca ou na sua", falava ele enquanto comia pedras de sal grosso.

Hoje sou grato a ele por me ensinar a dar a volta por cima e ter paciência. Chegue lá em casa e veja se alguém estranha as cortinas abertas, descarregos na linha de esquerda, comida com sal ou o nome de Deus sendo citado por um Exú. É tudo coisa comum lá...

E por incrível que pareça ele é o único Orixá que vi até hoje pedindo desculpas a alguém por algo que não deu certo. Com isso aprendi que perfeito é só Deus, mas aprendemos com todos.

Eu poderia escrever horas aqui falando como é o Sr. Marabô, suas vestes, presentes que ganha, lendas de suas outras vidas e tudo mais, mas prefiro falar de seu legado. É assim que se definem os grandes caráteres.

Axé.

8 de ago. de 2011

DESAPEGO



Quando Jesus disse "Mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no reino dos céus" minha compreensão não se limitou à relação entre a riqueza e a salvação, acredito que Ele estava se referindo ao desapego das coisas e sentimentos carnais e só assim as portas do paraíso se abririam.

Não é fácil desenvolver esse desapego, nós mesmo levamos inúmeras encarnações para aprender e outras incontáveis para colocar em prática, mas uma coisa é certa: o desapego é essencial. Se libertar das mágoas que nutrimos contra aqueles que nos faltaram - sejam estes carnais ou espirituais - e se livrar do apego excessivo naquilo que pertence somente à terra, como o ouro e a carne é realmente de extrema dificuldade porque já nascemos sob uma cultura que prega a propriedade privada, vivemos sob o mantra do individualismo e de uma hora para outra simplesmente abandonar tudo aquilo que acreditamos para receber coisas intangíveis, invisíveis e (para os ateus) infundadas, como o amor e a salvação parece até loucura. E quando falamos que é mais recompensador doar do que receber? Loucura total! Impossível de fazer.

Não se muda da água para o vinho num piscar de olhos, é um processo gradativo. Comece se desapegando de algumas idéias, de certos dogmas como o de que um Orixá não erra, por exemplo. É uma questão de lógica: perfeito e soberano é apenas Deus, fora isso todas as criaturas da eternidade estão sujeitas a falhas em menor ou maior grau. Parece loucura, não é? Mas aceite isso e reflita, verá como seu horizonte se expandirá um pouquinho mais. É o primeiro passo.

Após isso tente traçar uma linha que divide seus sentimentos internos e externos ao templo, tente ter o mesmo e máximo amor, respeito e ternura por todos mesmo que um desses seja seu desafeto fora da casa. Ficará mais leve com esse gesto de grandeza e semeará a tolerância em muitos ali, tenho certeza.

A vida e o templo são como construções: vão crescendo a cada tijolo bem assentado.

Axé